Aracaju/Se,

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Mata Escura (VI)

Crimes que abalaram Sergipe

Mata Escura (VI)
Acrísio Torres

A tarde morria pouco a pouco. Trevas iam envolvendo a natureza, e tudo acabou mergulhado na mais negra noite. A escolta decidiu acampar até o aparecimento da lua. Eram dez horas da noite. Como um disco enorme e belo a lua apareceu longe, fazendo destacar o contorno das coisas. O estreito caminho se desenhou alvo, tortuoso. Novamente parte a escolta, seguindo o passo tardo e cansado de Mata Escura. Um vento frio fustigava a face do réu e dos soldados. Havia expectativa nos espíritos à lembrança dos fatos da noite anterior. Chegou às duas horas da madrugada ao engenho Dira, onde foi forçada a permanecer até manhã. Disse Mata Escura não poder mais suportar a caminhada. Pediu uma montaria. No engenho Dira alugou-se um cavalo para Mata Escura. Não foi fácil conseguir do grave senhor de engenho o animal.

A revolta contra o criminoso parecia crescer à medida que se aproximava de Itabaiana. Eram cinco horas da tarde quando a escolta e o réu chegaram a Itabaiana. Eram seguidos de uma multidão que acorreu para ver o famoso bandido. Tinha um ar de agressividade. – É este que vai morrer? Indagou uma velha. Havia um tom de impunidade na indagação da velha. Depois, levantando o bastão em que se apoiava, lançou ao réu a sua maldição. O réu voltou-se indiferente e disse: - Sou eu mesmo! E, encarando bem a velha, acrescentou com desprezo: - Venha ver-me na forca. Há-de gostar. Depois de pronunciar essas palavras, Mata Escura passeou um olhar silencioso e também de desprezo pela multidão. Nada disse. No íntimo, culpava a própria sociedade pelos crimes que cometera.


Victor Hugo
Talvez Victor Hugo tenha razão ao afirmar que “a sociedade, eis a assassina, os vícios, eis os ladrões”. É necessário prevenir a criminalidade. Nada parece mais eficaz para essa prevenção que a educação do homem, no sentido de torná-lo um ser social melhor. Na cadeia de Itabaiana, Mata Escura foi recolhido a uma cela pequena e sórdida. Sobre uma mesa foi posta uma imagem de Cristo crucificado. Duas velas foram acesas. Mata Escura sentou-se no duro catre. Tinha o espírito mergulhado em reflexões amargas. Nesse momento, dele se aproximou um velho vigário, que lhe devia prestar as consolações espirituais. O condenado levantou os olhos para o velho vigário. Recusou os seus serviços, que lhe pareciam inúteis. Estava cansado, disse, e pediu que deixasse para outro dia os consolos espirituais.

– Estou cansado, reverendo. Muito cansado. Dizendo isso, o criminoso se voltou para o carcereiro e pediu charutos. Acendendo um, deixou escapar longas baforadas, impassível à presença do velho vigário. Seus olhos se fixaram no crucificado. Na manhã do dia seguinte entraram na cela do bandido o chefe da escolta e a autoridade judiciária. O chefe da escolta ordenou ao réu que se levantasse. Mata Escura ouviu sem a menor inquietação a leitura da sentença fatal. Lida a sentença, todos se retiraram da pequena cela. Mata Escura continuou fumando o seu charuto. Tinha o pensamento mergulhado em fundas e consoladoras meditações.

(*) - Do livro Sergipe/Crimes Políticos I, Cenas da vida sergipana 2, autoria de Acrísio Torres, Thesaurus Editora, prefácio do jornalista Orlando Dantas, páginas 86 e 87.

- Nova postagem de cenas da vida sergipana no dia 22 de fevereiro de 2011. Vai continuar abordando a saga do criminoso Mata Escura, ainda do tempo do império, a caminho do patíbulo, onde iria pagar, enforcado, pelos crimes cometidos, tudo de acordo com o autor e obra acima referida.
 
Adendo 

Muitos leitores do blog têm questionado sobre a aplicação da pena de morte ao criminoso Mata Escura. Observem que estamos nos referindo ao período do império, onde o Brasil era colônia de Portugal. À época, a nossa legislação era regida pelas chamadas ordenações reais, ou sejam, as afonsinas, as manuelinas e finalmente, as filipinas. Previa-se a pena de morte. Para uma melhor compreensão do assunto, segue, abaixo, matéria esclarecedora sobre o assunto:

HISTÓRIA DO DIREITO


Ordenações Filipinas
considerável influência no direito brasileiro

O sistema jurídico que vigorou durante todo o período do Brasil-Colônia foi o mesmo que existia em Portugal, ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e, por último, fruto da união das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência, as Ordenações Filipinas, que surgiram como resultado do domínio castelhano. Ficaram prontas ainda durante o reinado de Filipe I, em 1595, mas entraram efetivamente em vigor em 1603, no período de governo de Filipe II. Não houve inovação legislativa por ocasião da promulgação da Ordenação Filipina, apenas a consolidação das leis então em vigor. O foco eram casos concretos reduzidos a escrito, isto é, essa legislação estava muito distante do tipo de consolidação que se deu na França no início do século XIX, como conseqüência da Revolução Francesa, na qual se baseiam os nossos atuais códigos, que buscam sanar as contradições, repetições e lacunas - as consolidações da época mal tinham uma parte geral, com regras abstratas. Além disso, como não era intenção de Filipe I e Filipe II, castelhanos que circunstancialmente governavam Portugal, impor novas leis a esse povo, aproveitaram-se das normas já existentes, optando por não corrigir as contradições e lacunas anteriormente existentes. A norma editada seguia a estrutura dos Decretais de Gregório IX, dividindo-se em cinco livros que continham títulos e parágrafos: (I) Direito Administrativo e Organização Judiciária; (II) Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; (III) Processo Civil; (IV) Direito Civil e Direito Comercial; (V) Direito Penal e Processo Penal. Destaca-se o livro II, que demonstra a principal característica dos direitos do Antigo Regime, ou seja, a existência de normas especiais para cada uma das castas que compunham a sociedade daquele período.

Como os costumes que imperavam à época eram muito variados e locais, a regra que vigorava nos julgamentos era, sempre que possível, seguir a jurisprudência do mais alto tribunal do Reino - a Casa de Suplicação. Construía-se, assim, uma forma de buscar uniformidade nas decisões e, em última instância, fortalecer o poder central em detrimento dos vários poderes locais. Nos casos a serem julgados e que não estivessem previstos nas Ordenações Filipinas, casos omissos da legislação nacional, aplicavam-se subsidiariamente (i) o direito romano (Código de Justiniano), a partir das glosas (interpretações) de Acúrsio e das opiniões de Bártolo ou (ii) o direito canônico. Este último invocado quando estivesse em voga o pecado, como nos casos de crimes de heresia ou sexuais. Portanto, para julgar os casos que a eles chegassem, os tribunais deveriam ter à sua disposição o texto das Ordenações, o Corpus Iuris Civilis de Justiniano (glosas de Acúrsio) e os textos de Bártolo. Na falta de qualquer solução a partir dessas fontes, e não fosse o caso passível de ser avaliado pelos tribunais eclesiásticos, deveria ser remetido ao rei. A decisão proferida pelo rei passava a valer como lei para outros feitos semelhantes. As penas previstas nas Ordenações Filipinas eram consideradas severas e bastante variadas, destacando-se o perdimento e o confisco de bens, o desterro, o banimento, os açoites, morte atroz (esquartejamento) e morte natural (forca). Mas, como típica sociedade estamental da época, não poderiam ser submetidos às penas infamantes ou vis os que gozassem de privilégios, como os fidalgos, os cavaleiros, os doutores em cânones ou leis, os médicos, os juízes e os vereadores.


Há de salientar que a aplicação do direito no vasto espaço territorial do Brasil-Colônia não fazia parte das preocupações portuguesas, já que o objetivo da Metrópole era principalmente assegurar o pagamento dos impostos e tributos aduaneiros, mas mesmo assim as Ordenações Filipinas foram a base do direito no período colonial e também durante a época do império no Brasil. Foi a partir da nossa Independência, em 1822, que os textos das Ordenações Filipinas foram sendo paulatinamente revogados, mas substituídos por textos que, de certa forma, mantinham suas influências. Primeiro surgiu o Código Criminal do Império de 1830, que substituiu o Livro V das Ordenações; em seguida foi promulgado, em 1832, o Código de Processo Criminal, que reformou o processo e a magistratura; em 1850 surgiram o Regulamento 737 (processo civil) e o Código Comercial. Os Livros I e II perderam a razão de existir a partir das Revoluções do Porto em 1820 e da Proclamação da Independência brasileira. O livro que ficou mais tempo em voga foi o IV, vigorando durante toda a época do Brasil Império e parte do período republicano, com profundas influências no nosso atual sistema jurídico. As Ordenações, portanto, tiveram aplicabilidade no Brasil por longo período e impuseram aos brasileiros enorme tradição jurídica, sendo que as normas relativas ao direito civil só foram definitivamente revogadas com o advento do Código Civil de 1916. O estudo do texto das Ordenações Filipinas é salutar para a compreensão de boa parte dos nossos atuais institutos jurídicos.


Jornal Carta Forense, segunda-feira, 4 de setembro de 2006, in http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=484.

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